Quando recebi a proposta de escrever uma coluna de
arte para o Portal Afro, me senti lisongeado e com medo, porque afinal
de contas escrever sofre o que faço e sobre o que mais amo, é sim muito
complicado, mas aceitei a proposta de coração e mente abertos, e
confesso que me sinto a vontade em escrever aqui por conta da proposta
do site, que não é só sobre candomblé ou qualquer outro aspecto
específico da cultura afro, e sim por abranger toda ela e falar sobre
sua resistência perante todos os obstáculos e dificuldades pela qual
passou todos esses anos para se manter viva.
Pensando em resistência cultural e na grandeza da influência da
mesma na nossa sociedade e até em nosso cotidiano, resolvi escrever
sobre aquele que é o maior representante dessa cultura no mundo, um
ícone não apenas pelo seu talento, mas pela curiosa escolha que fez: a
de ser brasileiro, baiano e negro de fé e coração.
Hector Julio Páride Bernabó ou Carybé (7 de fevereiro de 1911 — 2 de
outubro de 1997). Artista baiano, como gostava de ser chamado,
acreditava na força da miscigenação das Américas. Retratou a cultura do
povo da Bahia como ninguém. Nascido em Lanús, Argentina, mas foi no Rio
de Janeiro na década de 20, quando ainda criança no grupo de escoteiros
do Clube de Regatas do Flamengo, ganhou o apelido de Carybé, apelido
esse que o seguiu por toda vida, fazendo com que deixasse de ser
conhecido com Hector e passase a ser apenas Carybé.
Carybé é uma artista de versatilidade ímpar. Durante sua vida
acumulou prêmios, viagens e ofícios: foi ceramista, gravurista,
xilogravurista, pintor, jornalista, historiador e até tocou pandeiro com
Carmem Miranda. E como jornalista no jornal "El Pregon" no ano de 1938,
durante uma longa viagem a trabalho, Carybé recebe na Bahia a notícia
que o jornal para o qual trabalhava havia falido, fato este que
descreveu da seguinte maneira:
“Na posta restante não havia dinheiro, só uma carta de meus
irmãos dizendo que o jornal tinha falido, que estavam tão duros quanto
eu, que tivesse boa sorte... E tive!
Voltava, depois de seis meses de gostoso miserê, com os desenhos
e aquarelas de minha primeira exposição individual, e com a certeza de
que meu lugar, como pintor, era na Bahia."
Apaixonado confesso pelo Brasil e principalmente pela Bahia, Carybé,
em 1957, oficializa sua relação com o país que o acolheu,
naturalizando-se brasileiro. No mesmo ano é confirmado Obá de Xangô do
terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, como Otun Onã Shokun e Iji Apógan na casa
de Omolú.
Desde de então, Carybé passa a mostrar a Bahia, seu povo, seus
costumes e crenças para o mundo. Hoje existem painéis e obras de Carybé
espalhadas ao redor do mundo, difundindo até hoje a nossa cultura
expressa de uma maneira única, não apenas por sua técnica, e sim por sua
paixão. Ele retratou com genialidade os Orixás, os Ritos de Camdomblé,
sem agredir seus costumes e respeitando os limites. Mostrou a essência
de todo o estado da Bahia, sua capital, o interior, o recôncavo. Sua
estética era intrigante, de traços simples, formas geométricas
minimistas, quase cubistas, cores fortes em seus painéis e seus
trabalhos a óleo, sem perder a suavidade. Seus trabalhos são uma
referência tão grande, que mesmos os leigos são capazes de reconhecer
suas obras.
A estética de Carybé sempre foi para mim uma referência; ele me é quase
um mestre que influenciou-me de maneira grandiosa. Detalhes de sua obra
mudaram minha visão de perspectiva, pois ele brincava, quase distorcia a
perspectiva em seus trabalhos. Outra caracterisca muito interessante,
uma marca particular, são os persanagens sem rostos. Isso me chamou a
atenção por ser a melhor maneira de expressar um povo, não apenas
pessoas.
Como toda jornada tem um fim, a de Carybé teve seu ponto final (
talvez uma exclamação) em 1º de outubro de 1997. Certamente não por
coincidência, faleceu no Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá.
Os principais acervos desse gênio estão espalhados por todo mundo.
Abaixo está uma lista simplificada dos principais locais onde é
possível encontrar alguma obra desse artista. É possível notar, meu
amigo leitor, a proporção que nossa cultura tomou através das mãos desse
Obá de Xangô, argentino com alma negra:
*Acervo Banco Itaú - São Paulo SP
*Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa (Portugal)
*Fundação Raymundo de Castro Maya - Rio de Janeiro RJ
*MAM - Salvador BA
*MAM - São Paulo SP
*MoMA - Nova York (Estados Unidos)
*Museu Afro-Brasileiro - Salvador BA
*Museu da Cidade - Salvador BA
*Museu Nacional de Arte Contemporânea - Lisboa (Portugal)
*Museu de Arte da Bahia - Salvador BA
*Casa da Manchete - Rio de Janeiro RJ
*Museum Rade - Reinbek (Alemanha)
*Núcleo de Artes do Desenbanco - Salvador BA
*Pinacoteca Ruben Berta - Porto Alegre RS
Não posso deixar de citar também que há painéis de Carybé em Miami-EUA, Argentina, Espanha e em outros estados brasileiros.
Encerro esse "papo", com as palavras de seu grande e inseparavél
amigo Jorge Amado em "O Capeta Carybé", obra na qual Jorge Amando
registra a vida e a obra de Carybé, que de fato parece quase uma obra de
ficção:
"Exemplo notável em sua arte, que recria a realidade do país e
da vida popular que ele conhece como poucos, por tê-la vivido como
ninguém".
Thiago Chagas